domingo, 30 de maio de 2010

um olhar diverso

Dizem que Ana sempre olhou muito mal.
Que ela simplesmente não via o que quase todo mundo via.
Que seu olhar dispersa das coisas.
E que, entre outras coisas, só via de suspiros pela lua cheia nascendo no horizonte, ou via de chateação pela espinha impertinente nascendo em seu rosto.
Ana sempre enxergou melhor com os ouvidos.
Até parece que nasceu de música.
Poderia ser cantora, violonista, pianista.
Mas não, Ana escolheu as artes plásticas que pedem tanto aos olhos.
Assim Ana habituou esfregar seu olhar nas coisas ao seu redor.
No entanto esse olhar atento durou pouco tempo.
Ana distraída começou a ver com a imaginação, mais ou menos como fazia quando criança e via o que ninguém via.
Ana desenhou delírios e criou seres nunca vistos disso.
Nem tardou e Ana abandonou as artes.
Decidira escrever poesia e seu olhar se voltou para dentro.
Escreveu de sentimentos e sensações, principalmente sensações: "o sentimento vaza como música em minha pele".
Ana descobrira que não só os versos mas cada palavra, em si mesma, comporta sensações.
Carrasco, por exemplo, é uma palavra bem seca provavelmente pelo dígrafo rr seguido de asco.
Burburinho é uma palavra que borbulha e faz cócegas ao pé-do-ouvido.
Enquanto jequitinhonha tem algo de nhoc-nhoc, nhac-nhac.
E alpendre tem uma amplitude inicial mas aconchega no final.
Ana prestava muita atenção às sonoridades das palavras e suas significâncias, daí inventava neologismos.
Alguns dizem que Ana virou poeta porque enxergava muito mal com os olhos (bendita deficiência!).
Ana é de ouvidos, de sensações, imaginânsias e sonholências.

domingo, 23 de maio de 2010

Diário de uma ACS

Segunda-feira, oito horas da manhã, chuvinha fina. Avisto Ivanilson, meu colega ACS, vindo em minha direção em uma rua qualquer do bairro da Mustardinha. Ele acena pra mim fazendo continência com a mão direita. Eu retribuo o gesto e nós dois sorrimos. Conversamos um pouco e em seguida cada qual segue seu rumo ao próximo setor censitário que devemos cobrir.

Era apenas mais um dia na rotina exaustiva dos agentes censitários supervisores (ACS). Naquela segunda-feira iniciava meu oitavo setor, o maior até então, com 17 quadras que nem sempre correspondem a realidade encontrada em campo. Meu PDA (personal digital assistent) já estava em mãos pronto pra registrar todos os endereços residenciais e não residenciais, além de atualizar os mapas com o auxílio de GPS, e registrar as características do entorno: pavimentação, calçamento, iluminação, arborização, acúmulo de lixo, esgoto a céu aberto... Trabalho necessário mas repetitivo e enfadonho. E o calor do Recife continua infernal, apesar de estarmos no outono.

Chego em casa à tardinha, cansada, pernas cansadas e o corpo quente de tanto sol. Queria encontrar ânimo pra escrever um poema erótico, um conto amoroso mas não sinto tesão... Lembro Rilke em seu belo "Cartas a um Jovem Poeta" aconselhando-o a escrever sobre seu cotidiano mesmo que lhe pareça pobre. E na impossibilidade de escrever sobre o amor, decido escrever sobre o meu cotidiano atual, afinal todo cotidiano, o cotidiano honesto, tem sua dignidade.

Muitas imagens ocorrem em minha mente e encontrar, eventualmente, Ivanilson, é um alento pois aplaca em certa medida a solidão do trabalho de rua. Começo a escrever e já me encontro na terceira transcrição com papel e caneta em punho. Lembro Walter Benjamin em seu admirável "Rua de Mão Única" falando alguma coisa sobre transcrição de textos, que aquele que transcreve um texto o conhece melhor do que aquele que apenas o lê, como quem percorre uma estrada a conhece melhor que aquele que a sobrevoa. Transcrevo-me para descobrir os atalhos do meu texto - e do meu pensamento - e percorrer o melhor caminho. Penso nas ruas e becos que percorri mais de uma vez no bairro da Mustardinha. E em suas entrelinhas encontrei pessoas várias: gente curiosa, desconfiada, simpática, antipática, agressiva, doce, amarga... Encontrei dona de casa com suas panelas no fogo sem tempo de me atender. Encontrei senhora solítária que quase agradece por alguém ter tocado em sua porta. Encontrei pessoas sentadas em cadeiras nas calçadas jogando conversa fora. Encontrei um idoso que, se desse corda, contava a história do bairro todinha. Encontrei crianças jogando bola ou empinando papagaio. Encontrei crentes em cultos evangélicos. Encontrei pessoas em ofícios diversos e adolescentes ouvindo rap ou Chico Science. São muitas as vidas, humores e idiossincrasias encontradas entre/e nas vias/veias do bairro que, assim como a cidade, é mais que um mapa a ser llido. O bairro, assim como a cidade, deve ser percorrido, de preferência a pé. Pois só assim, a pé, se conhece não apenas seu corpo mas também sua alma.

Acho que já posso dizer que conheço o bairro da Mustardinha em corpo e alma. É só um pedacinho da cidade. Mas se a Mustardinha está contida no Recife, o Recife, pelo menos em parte, também está contido na Mustardinha. Poderia contar algumas histórias como quando uma menina, muito faceira, me acompanhou no trabalho por algumas ruas. Ou como encontrei um marceneiro ouvindo música bleque dos anos 60/70, para minha surpresa e satisfação. Ou ainda da minha alegria ao descobrir a sede do famoso Clube Carnavalesco Misto dos Lenhadores.

Muitas são as lembranças. Muitos são os encontros ao longo do dia, a cada dia. Escrevo o que posso ou o que tenho vontade de escrever. E ainda que meus sonhos de amor estejam engessados, tenho minha cidade, tenho minha realidade: meu cotidiano. Estou vivendo percorrendo ruas, encontrando gentes. Fecho os olhos. Acho que quase posso sentir os odores e sons da Mustardinha. E acho que, pelo menos em parte, em alguns momentos, também me encontrei ali.