quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Conto de Natal

por Marcelo Carota (Pirata Z)

N um conto de natal
     ecco! - ou, 'Don' Angelo e o cavalo do Zorro

1973. eu, 7 anos de idade.
    como todo mundo, em toda família, eu tinha um tio meio 'torto' - casado com 
uma irmã de meu avô siciliano - e meio banana,  também. seu nome era [ó só]
Américo... rico. muito rico. bobo. muito bobo. vai vendo.
    todo ano, próximo ao natal, ele perguntava qual presente a gente gostaria de
ganhar, mas, no almoço de natal, sem nem embrulhar, ele dava pra todos uma
mesma revistinha do rato mickey... no ano seguinte, a mesma pergunta, e eu,
bobo, na batata, respondia: "a capa, a espada, a máscara e o cavalo do Zorro!". tá.
chegava o natal, revistinha do rato mickey. no ano seguinte, mesma pergunta,
mas, desta vez, pensando que, talvez por conta do cavalo, que devia custar uma
nota, é que eu nunca ganhava o que pedia, tirei o bicho do pedido. em vão... no
almoço de natal, revistinha do rato mickey... vendo-me murchar, 'DonAngelo,
meu avô,  não se conteve. cuspiu no prato uma castanha que estava comendo,
juntou os polegares às pontas de cada mão em concha e, agitando-as, disparou:
    - ascuta me, Américo: sei pazzo?
    - what's up? - provocou o tio américo, que adorava falar inglês menos para se
exibir e mais para irritar meu avô, sabendo-lhe o apego às suas raízes.
    - uatis api mio cazzo! risponda me: sei pazzo?
    - no, i don't. why?
    - então, caspita ! qual o prazer de deixar uma criança triste?!
    - mas eu não dei o presente?
    - ah, fancullo! um aviso: nunca mais - mai, capice? - dê presente para meus
netos, capice?
    - mas...
    - capice, pezzo di merda?
    - tá, tá, entendi...
    - ecco!
    e, com seu sangue siciliano ebulindo nas veias, 'Don' Angelo esmagou uma
noz com as bases das mãos, 'sinalizando', claro, que é o que faria com o crânio
do cunhado cretino, não fosse isso matar Giulia, a sua irmã, de desgosto, com
o que, além de tudo,  sem o bolo de nozes que esta fazia, os natais nunca mais
seriam iguais - e natal, para o meu avô, era coisa muito séria; daí sua fúria.
    'Don' Angelo foi um homem de amores plurais; assim, amou intensamente,
enquanto viveu,  os netos e as mulheres - nesta ordem,  graças à qual minha
avó, 'Dona Pina', assim o definia: - "um péssimo marido, um pai severo e um avô
de conto de fadas" - e foi, mesmo, tudo isso, mas eu tive a sorte de ser neto...
    militar reformado, nunca foi rico, mas,  para os netos - e para as "ragazzas",
claro - jamais negou nada, nunca aparecendo para ambos com as mãos vazias
[e, no natal, essa característica era elevada à enésima potência].
    pelos netos, em dezembro, sossegava o "periquito", vivendo exclusivamente
para a família. ia ao banco, sacava todo dinheiro duma conta de poupança que
mantinha para o natal, na qual,  de janeiro a novembro de cada ano, 'pingava'
toda grana que conseguia economizar. pegava o seu Maverick - que, pra mim,
nanico como fui em criança,  parecia um iate -,  juntava os netos,  e íamos às 
compras - exceto as de nossos presentes, que essa era uma delícia toda dele.
   
    filho de um comerciante de frutas, secos e molhados,
 'Don' Angelo era um craque pra escolher as melhores e
 mais variadas frutas. pelo toque e pelo cheiro, sabia se
 eram, ou não, as mais deliciosas - idem para a escolha
 das azeitonas e do azeite [siciliano, sempre, e o cheiro
 deste nunca mais saiu de minha memória], bem como
 do cordeirinho a ser assado e do vinho a ser bebido [até
 pelas crianças, aos bocadinhos por ele, claro, servidos].
    comprávamos ainda todos os ingredientes para as massas e doces que Dona
Pina preparava em casa - até os 9 anos, nunca comi massa industrializada -, e
mais: velas, adereços para a árvore que ele montaria, tudo de necessário para
receber "os cavaleiros e a princesa de meu reino", referindo-se, respectivamente,
aos 4 netos e à única neta de sua corte muito particular - e tudo isso em troca,
acredite, de ouvir uma única e mesma palavra de cada neto à sua pergunta:
    - então: tutti bellissimo?
    - ecco! - exclamávamos, individualmente, a palavra mágica.
    e 'Don' Angelo,  depois de ouvir 5 ecco, com o seu rosto de homem mais feliz
do mundo, ensopava um dos finos lenços que adorava ganhar. italianíssimo...
    por aí, creio, dá para imaginar o que significou pra ele a babaquice do tal tio
Américo, à qual reagiu não só esmagando a noz, mas, faltou dizer, chamando-
me junto a si, colocando-me no seu colo e, com o maior sorriso, dizendo-me:
    - ei, piccolo Zorro, que cara é esta, hãn? no natal do ano que vem, EU vou te
dar a tua capa, a tua máscara, a tua espada, e mais: vou te dar o teu cavalo!
    - branco, vô?
    - ecco!
    - grande?
    - bem - e olhou em direção ao Américo, antes de responder: - mezzo. pode?
    - ecco!
    - ecco! - repetiu 'Don' Angelo, com um sorriso diferente no rosto.
    durante o ano, eu não pensava noutra coisa que não no cavalo que meu avô
me prometera. em outubro, comecei a ser preparado para a chegada do bicho -
e meu avô, com toda sua lábia, me convenceu de que ter um cavalo 'diferente'
era muito mais legal do que ter um cavalo igual a qualquer outro. concordei.
    num domingo, estava na casa de meu avô.  Palmeiras e São Paulo jogariam
uma partida decisiva,  e meu avô estava muito agitado,  nervoso. acendeu seu
cachimbo, colocou-me em seu colo, e me perguntou:
    - quem vai ganhar, Zorro?
    - o Palestra. de quanto, vô?
    - não importa. basta ganhar - e viva o Palestra!
    - viva!
    5 minutos de jogo, gol do São Paulo. o cachimbo de 'Don' Angelo foi ao chão.
toca o telefone, minha avó atende e passa o aparelho pro meu avô, dizendo:
    - é o Américo.
    o tio Américo era tão são-paulino, mas tão são-paulino, que, rico, comprara
uma mansão no Morumbi, para facilitar a vida dos amigos que tinha no clube,
nos dias em que fazia festas pra estes.
    meu avô, já esperando a gozação, atendeu.
    - alô. sim... sei... caspita! já disse que sei! fancullo! o jogo apenas começou -
bum! bateu o telefone, e exclamou: - e viva o Palestra!
    - viva! - acompanhei.
    10 minutos para acabar o primeiro tempo. falta a favor do São Paulo. Pedro
Rocha, se não me falha a memória, vai bater. tem, dizem, um canhão no pé.
    - vô, eu quero um canhão pra colocar no pé.
    - filho, fica quietinho. vamos torcer pra bola acertar o placar.
    - mas cê me dá um canhão pra colocar no pé?
    - dou, mas depois.
    gol do São Paulo. desta vez, eu - não o cachimbo -, é que vou ao chão, com o
salto que meu avô deu da cadeira, berrando palavrões, brigando com o locutor,
esquecendo-se de que eu estava em seu colo...
    - desculpe, filho. foi sem querer que o vovô fez isso, ouviu?
    - ouvi. me dá um canhão pra colocar no pé?
    - dou, mas amanhã. hoje é dia de torcer pro Palestra. e viva o Palestra!
    - viva!
    toca o telefone.
    - se for o filho da puta do Américo, diz que tô com a irmã dele, ligo depois.
    - alô - atendeu 'Dona' Pina, que foi logo dizendo: - Américo, se eu fosse você,
ligava mais tarde.
    - certo, Pina, mas fala pro Angelo não se esquecer do que...
    - Américo - interrompeu minha avó.
    - quê?
    - fancullo!
    começa o segundo tempo. 15 minutos de jogo, pênalti para o Palmeiras, que
Leivinha converte. toca o interfone, minha avó atende.
    - sim, claro. mil desculpas. obrigado. - diz 'Dona' Pina, que desliga o aparelho
e fala para meu avô: - o síndico pediu pra fazer menos barulho.
    - corintiano filho de uma puta, isso sim!
    mais 10 minutos, Ademir da Guia cruza para César Maluco, que, de cabeça,
empata para o Palmeiras. indescritível,  a reação de meu avô. toca o telefone -
desta vez, ele mesmo atende:
    - parla, cornuto! grita agora, fala agora! o quê? da onde? sim, e daí? fancullo!
    - quem era, o Américo? - quis saber minha vó.
    - não, o síndico do prédio vizinho.
    - e o que ele queria?
    - pediu pra eu fazer menos barulho, o corintiano filho de uma puta.
    São Paulo, preferindo levar a decisão pros pênaltis, se fecha na defesa, e o
jogo fica amarrado, mas o Palmeiras insiste em tentar resolver o jogo no tempo
regulamentar. Luís Pereira vem com a bola lá de trás,  da defesa palmeirense,
avança rumo ao meio-de-campo,  e, quando um são-paulino vem marcá-lo, ele
toca para Dudu, que toca de primeira pra Leivinha, que dribla um, dribla outro,
avança e toca pra Ademir da Guia,  que conduz a bola até a meia-lua com toda
a classe que lhe valeu o apelido de "Divino", corta um, desvia de um 'carrinho'
e, antes que 'Don' Angelo terminasse de mastigar o braço da poltrona, toca na
bola por baixo, esta encobre o goleiro e desce "lambendo" a rede, e o Palmeiras
vira o jogo. 3 a 2. faltando 1 minuto pra acabar, a torcida invade o campo. fim.
    sentiram falta de algo e de alguém? eu também, no dia, porque 'Don' Angelo
não comemorou o gol, a vitória, o título, nada... saíra de mansinho da sala, pra
falar no outro telefone. ao encontrá-lo, vi que falava baixinho com alguém.
   
    - era o tio Américo?
    - não, filho, era a vizinha japonesa.
    - e o que ela queria?
    - não sei, filho, eu não falo japonês...
    noite de natal. 'Don' Angelo,  animadíssimo,  entregando os presentes para
os netos. chega a minha vez.
    - e a mio piccolo Zorro... questo!
    qual prometera, 'Don' Angelo me deu a capa, a máscara e a espada do Zorro.
    - e o cavalo, vô? - cobrei
    - amanhã, na casa da tia Giulia.
    mal dormi, aquela noite. já de manhã, as horas pareciam não passar, nada
de chegar a hora do almoço. me distraí com os apetrechos do Zorro, e usei um
cabo de vassoura à guisa de cavalo, e 'cavalguei' e enfrentei inimigos até ser
finalmente chamado para o banho, que tava na hora de ir à casa de tia Giulia.
    fui vestido de Zorro, como recomendara 'Don' Angelo, para minha alegria, e,
lá chegando, tio Américo, com os seus cabelos brancos levantados de um jeito
muito engraçado, parecendo um moicano, ou parecendo ter uma crina, pegou-
me no colo, colocou-me sobre os seus ombros, e me disse:
    - muito prazer, Zorro! meu nome é Pangaré, e eu sou o seu cavalo. Vamos?
    e tio Américo saiu correndo pelo jardim enorme de sua casa, trotando e, eu
não entendi porque, gritando "Palestra, Palestra, Palestraaa!!", mas me diverti,
achando até melhor que um cavalo de verdade, que não gritaria "Palestra"...
    eu o cavalguei por uns 5 minutos, até que meu avô veio, me tirou do ombro
de tio Américo, e disse:
    - pronto, filho. depois você anda mais a cavalo.
    - mas, vô, tava legal...
    - dopo, filho, dopo. eu prometo. eu sou de não cumprir o que prometo?
    - não.
    - ecco! e você, Américo, vá se arrumar, vá.
    - mas...
    - caspita! vá se arrumar, que seus netos chegaram, porca miséria!
    - olha, depois não venha me dizer que eu não paguei a...
    - Américo,  vá se arrumar pra receber seus netos! que prazer você tem em
deixar crianças tristes, dio santo!
    na hora, fiquei injuriado, mas 'Don' Angelo, esperto, me distraiu rapidinho,
retomando aquela conversa sobre comprar um canhão para o pé, e aí, claro, o
"cavalo" não importava mais.
    tempo depois, já crescidinho, ele já morto - 1982 -, é que pude, finalmente,
entender a dimensão emocional de 'Don' Angelo, "péssimo marido, pai severo e
um avô de conto de fadas". era mesmo. inclusive para netos que não os seus.
   
    ~ ~ ~ ~ ~ ~ ~ ~ pz ~ ~ ~ ~ ~ ~ ~ ~



Marcelo Carota é jornalista, escritor, zineiro, paulista e palmeirense. 
Mora em Brasília/DF e se auto-denomina um caipira punk.

Texto editado originalmente em 19/12/2007 na Pirata Zine (zine eletrônica), edição 107, ano 4.








Boas  festas e um ano novo com muito humor, saúde e alegrias pra tod@s!


Um comentário:

Anônimo disse...

Um belíssimo Natal para vc e os seus e que 2013 seja um daqueles anos de marcar positivamente na história.

Beijaum do IN_