Em homenagem ao Dia Internacional da Mulher pensei em escrever sobre a violência a que são submetidas (NÃO ESQUEÇAMOS, NÃO ESQUEÇAMOS), sobre o direito ao aborto (NÃO ESQUEÇAMOS, NÃO ESQUEÇAMOS), sobre a discriminação sexista (NÃO ESQUEÇAMOS, NÃO ESQUEÇAMOS), sobre os baixos salários e desemprego (NÃO ESQUEÇAMOS)...
Mas o tempo urge e eu não queria escrever um texto apressado e descuidado sobre assuntos tão sérios. Sendo assim resolvi navegar na rede e descobri esse texto que gostei um bocado, da Maria Rita Kehl. Certamente eu não escreveria texto melhor. Mas não se trata de um manifesto contra a violência, nem sobre o direito ao aborto, etc, etc, etc. Trata-se de uma bela história (real) de amor entre um homem e uma mulher. Ei-la:
O Sartre de Simone
Eles formaram o casal símbolo das esperanças libertárias dos tempos modernos . O amor e a paixão da amizade, que os uniram por mais de 50 anos, até a morte de Sartre, consolidaram-se em torno de um objeto comum: a verdade. Mas como é impossível viver na verdade, o encontro entre Sartre e Simone inaugurou-se com uma mentira. Em 1929, quando licenciou-se em filosofia na Sorbonne, Beauvoir estava envolvida em uma relação platônica com André Herbaud, amigo de Sartre. Quando Jean-Paul propôs-lhe um encontro, Simone inventou uma desculpa e pediu a sua irmã que a substituísse. Esta, ao voltar do passeio, disse que Sartre engoliu a mentira “cortesmente”.
Poucas semanas depois, Castor entraria com Herbaud e Nizan no quarto de Sartre para estudar Leibniz. Já no primeiro encontro percebeu que Sartre era o que mais sabia no grupo. Ganhava todas as discussões, mas mostrava uma genuína alegria em compartilhar seu saber. “Era um maravilhoso treinador intelectual”, escreveu Simone em seu diário . Sartre estava com 23 anos, Simone com 21. Depois deste primeiro contato, seguiu-se um período de alegre camaradagem entre Simone e os três rapazes, que a consideravam como uma igual: a moça de família burguesa e formação católica não se chocava com a liberdade da conversa masculina. Em pouco tempo, a amizade de Sartre prevaleceu sobre a dos outros dois: “todo tempo que não passava com ele era tempo perdido”.
Para Beauvoir, Sartre foi o companheiro que não exigiu que ela renunciasse a si mesma. Para ele, Castor foi a cúmplice em um projeto que raras mulheres de sua geração aceitariam: uma parceria amorosa radicalmente anti burguesa, que excluía casamento, filhos, formação de patrimônio. Uma união em que o pensamento e a escrita sempre estiveram em primeiro lugar, seguidos do companheirismo, do prazer da conversa, da paixão pela política. “Bruscamente, não me achava mais só”, escreveu Simone, surpresa por ter encontrado um homem que a dominava intelectualmente, mas estimulava-a para que se tornasse sua igual. “Com ele, poderia sempre tudo partilhar ”. Não foi um arroubo de juventude. Sartre e Simone bancaram, durante 51 anos, a ousada proposta do que Benjamin Péret chamou de amor sublime, entre homem e mulher capazes de fazer, do encontro amoroso, condição de sublimação. Sartre não tinha interesse em dominar Simone. Sua liberdade o interessava, assim como seu talento e sua produção escrita. Foram sempre os primeiros leitores dos livros que um e outro escreviam. Nunca moraram na mesma casa. Mesmo durante a doença de Sartre, os hábitos do agradável cotidiano compartilhado respeitavam os limites da autonomia de cada um. Passavam, juntos, uma parte das férias; depois, cada um viajava para o seu lado. “Mas a separação de Sartre sempre era um pequeno choque para mim”, escreveu Beauvoir.
A longa lista de casos amorosos de Sartre, todos do conhecimento de Simone, tinha relação com o prazer que ele sentia em ocupar, diante de outras mulheres, a posição masculina tradicional, de domínio e poder. É possível que o racionalismo que marcou a parceria entre Sartre e Simone, condição para que o casal sobrevivesse à arriscada proposta da liberdade sexual de ambos, tenha lhes custado o preço de uma certa deserotização. Na longa entrevista que Sartre concedeu à sua companheira em 1974, o interesse dele por outras mulheres foi discutido abertamente; àquela altura, o triunfo de Beauvoir sobre todas as outras estava consolidado. Com outras mulheres, Sartre experimentava o mundo singular de cada uma. Porém: _ “O mundo, eu o vivia com você ”. Parecia um amor esfriado; talvez não fosse. “Amo muito você, minha querida Castor”, teria lhe dito Sartre no hospital, dois dias antes de morrer.
A morte de Sartre deixou Simone em estado de choque. Tentou deitar-se junto ao corpo dele no leito do hospital, debaixo dos lençóis. Ficou seriamente doente e esgotada nas semanas que se seguiram. Foi uma despedida dolorosa. “Sua morte nos separa. Minha morte não nos reunirá. Assim é: já é belo que nossas vidas tenham podido harmonizar-se por tanto tempo”.
Maria Rita Kehl - Doutora em psicanálise pelo Departamento de Psicologia Clínica da PUC de São Paulo. Conferencista, ensaísta e poeta. Participação na imprensa desde 1974 com artigos sobre cultura, comportamento, literatura, cinema, televisão e psicanálise. Autora de ensaios em diversas coletâneas.
Um comentário:
Oi Sandrinha:
To completamente sem tempo. Passei só pra deixar um abraço e um beijo pelo Dia da Mulher.
Bye.
Postar um comentário