segunda-feira, 16 de outubro de 2006

Teatro de Ruídos

Essa é uma história de uma sombra que se transformou num ruído. Gostaria de descrever exatamente como era esse ruído mas é impossível, apesar de reconhecível, vocês verão adiante o porquê. O máximo que posso lhes dizer, caros e caras, é que todo ruído é um som fora do contexto. Explicando melhor: se alguém está ouvindo música e o telefone toca, isso é um ruído. Outro exemplo: se pessoas estão conversando e alguém chega batendo bola no chão, isso é um ruído. Deu pra entender?

Mas a sombra não: sombra é uma “entidade” sempre dentro do contexto. A sombra sempre acompanha o seu dono, é uma espécie de espelho sem luz (apesar de depender da luz pra existir). A sombra é sempre fiel aos movimentos do seu parceiro inseparável. Só quando o sol está no zênite ou não há luz, ela se intimida. Mas essa sombra nasceu com espírito de rebeldia, anarquia, zombaria. Um determinado dia, ela estava um tanto preguiçosa e resolveu não acompanhar o seu dono, saiu totalmente do contexto. Ficou em casa, de pernas pro ar, deitada no sofá. Seu dono não gostou nadica de nada do seu comportamento e repreendeu-a. Outro dia ela estava bastante alvoroçada e saiu na frente sem esperar seu dono, novamente saiu do contexto e o dono, novamente, ficou danado com ela: “Ora, quem já se viu? Minha própria sombra passando adiante de mim. Era só o que faltava”.

Então a sombra começou a prestar atenção em certos ruídos. Ruído do computador, ruído de fax, ruído de motor, ruído de cadeira arrastando no chão, ruído de máquina de lavar roupa, ruído de descarga. Ah, são tantos ruídos urbanos. Ruídos que quase desaparecem ao anoitecer e assim se pode ouvir música mais baixinho no toca-discos. Mas aí com tanto silêncio assim-assado é possível ouvir o ruído da agulha no toca-discos. E também o ruído dos dedos arrastando nas cordas do violão. E foi exatamente por esse ruído que a sombra se apaixonou. Assim ela deixou de ser sombra e passou a ser também um ruído de arrastar de dedos nas cordas do violão. Passou a ser alguém, ops, quero dizer, algo. Imaterial, é verdade, mas independente do som que o violão produzia. Complementando-o, apesar de estar fora do contexto do pentagrama musical, da clave de sol, do dò ré mi fá sol...

Faz sol, e a sombra que virou ruído já não precisa seguir as regras do Astro Rei para existir e ser feliz. E depois de um tempo, totalmente adaptada à vida de ruído, criou, juntamente com seu companheiro ruído, um Teatro de Ruídos espetacular e de dar inveja à qualquer Teatro de Sombras que existe por aí. Mas por favor, não me peçam para explicar como funciona esse Teatro de Ruídos: ele é absolutamente inexplicável, só pode ser vivenciado.

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